O Evangelho do III domingo comum (Lc 1, 1-4; 4, 14-21) pressupõe que se pense no contexto onde tudo se realiza. Lucas já escreveu a sua intenção, aqui repetida ( Lc 1, 1-4), e a parte relativa à infância de Jesus e preparação para o início da atividade missionária que aqui se abre. O ministério de Jesus na Galileia ( segunda parte do seu Evangelho) é precedido pela cena das tentações no deserto (Lc 4, 1-13) como meio vital onde é necessário anunciar, apesar dos fortes arremessos do mal. Vive-se num quadro repleto de tentações de todas as ordens, o que adensa a importância do anúncio.Fustigados pelos diferentes aspetos dos ventos de hoje e arrastados pelo caudal de dificuldades imensas, importa prosseguir esta tarefa basilar para cada homem.
I :: A Palavra
A Liturgia integral da Palavra detém a atenção no facto da importância acrescida de conceder a esta o lugar central na vida de um povo. Com efeito, não se trata de fazer da Palavra apêndice ou passatempo meigo, mas antes de a escutar longamente, de nela meditar longas horas para recordar o que foi feito por cada um e que pode estar esquecido. A vida de um crente não pode andar ao lado da Palavra, mas precisa de a considerar tão importante como o pão para a alimentação. Não se trata de um anexo de caminhada, mas da bússola para não se enganar no sentido da marcha.
“Desde a aurora até ao meio dia” (Ne 8, 3)não é um tempo como qualquer outro, nem um conjunto de horas para cabecear ou passar pelo sono, entretidos com as questões que afoitam a vida presente. Trata-se antes de um tempo de pausa para balanço ou de uma atividade de compreensão do que se ouve para poder ir mais longe naquilo que se deseja. Todo o ser humano precisa de rever a sua vida, tendo tempo para meditar a Palavra que ouve. Assim o futuro poderá ser mais sensato.
II :: O Intérprete
Compreender a Palavra significa não ficar parado, mas levantar-se (Ne 8, 5) à sua mensagem e traduzir nas veias do quotidiano o que ela recorda de tudo o que Deus fez e faz por Seu Povo. O homem e a mulher não são seres estáticos, estarrecidos pelos eventos que todos os dias acontecem, mas são criaturas livres que enfrentam o destino e o resolvem para o melhor; não sucumbem aos acasos da sorte, mas fazem coisas novas na cadeia imensa que constituem as suas ações. Não são pesos mortos, enterrados num lago imenso, mas focas destemidas que aparecem à tona do mar bravo.
Cada um necessita também hoje de um levita/intérprete para compreender cabalmente o sentido; não são os homens franco-atiradores num mar embravecido, mas escutam os intérpretes de hoje, para poderem ir mais além. Quando cada um se deixa guiar por quem tem o dever de interpretar, então saberá que o dia é para consagrar ao Senhor.
O “hoje da salvação” chegou de forma definitiva para todos, pobres, cativos,cegos, oprimidos (Lc 4, 16-18). O dia que já começou não é para gastar em vão, mas para dedicar à causa da parte do Senhor, um “ano favorável” (Lc 4, 19). Acontece assim para todos um ano jubilar na medida do empenho de cada um. Trata-se de unificar potencialidades, sentindo e fazendo o melhor da unção profética que foi concedida.
Cada um participa no corpo que forma. O Espírito do Senhor está sobre Cristo em cada homem novo que d’Ele vive. A Sua missão não foi apenas ontem nos seus passos na Galileia, mas é hoje nos que se reclamam da Sua presença e pertença. Os homens de hoje são a continuação benéfica desta missão junto dos mais pobres que continuam a ser evangelizados nas agruras da vida moderna. Cristo prossegue a Sua missão com os gestos e com as palavras de todos. Assim o ano é favorável para todos: ungidos como profetas para todos.
III :: A Profecia
A profecia é de boa notícia, de liberdade e de nova visão.
No clima de maré alta de preocupações e mesmo de infortúnios, a novidade é boa porque repleta de esperança; não vem dos homens, apenas passa por eles, mas a fonte é Deus. As amarras serão desligadas e os prisioneiros poderão ser livres sempre que o desejam. A vista terá novo horizonte e enchergará mais além.
Um ano de graça é assim anunciado aos que pareciam privados de futuro, aos que andam preocupados, aos que desconfiam da trama da vida; a liberdade reaparece no palco dos enjaulados em tantas mediocridades; os cegos serão felizes porque verão além das aparências. Deus faz que a vida seja benéfica para todos: “não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa fortaleza” (Ne 8, 10).
IV :: A missão
Todos são para todos. Os cristãos não andam uns para cada lado, nem fazem as coisas em empresa privada para o estrito bem pessoal; animados e ungidos pelo único Espírito (1 Cor 12, 13), trabalham para todos e realizam constantemente uma empresa comunitária. Ninguém é posto de lado, como inútil, mas todos concorrem para o bem do corpo que formam; não discutem a preponderância de cada um, mas são animados pelo interesse que é do colega para o bem comum.
Estão atentos aos que assinalam maiores carestias, pois norteia-os o bem universal. Prestam cuidados aos que estão na indigência e são protagonistas da caridade como marca de Quem neles habita. Justificam o selo do Batismo que receberam e falam sempre palavras do Evangelho que meditam.
Qualquer pessoa é próximo e figura na qual é preciso confirmar o “ano de graça do Senhor”. A missão não olha para a cor ou para o prestígio, mas centra-se no rosto que espelha a alma onde mora o Invisível.
A missão é de todos e implica pessoalmente que cada um se disponibilize para “abrir o livro” (Lc 4, 17), para fazer a cada instante um pacto com o Espírito (Lc 4,18) e para cumprir quotidianamente a passagem que lê (Lc 4, 21).
“Abrir o livro” impõe a conversa demorada e persistente com a Escritura, lendo a história de amor sempre dedicado e benevolente; impõe horas a fio de diálogo com a tradição cristã discernindo o melhor do momento.
Efetuar um pacto permanente com o Espírito conduz cada um à correta interpretação do que está escrito sem esquecer sílabas, nem confundir conceitos. Tal pacto discreto, mas fiel permite que não se desvie da rota traçada pela mão de Deus que o embala.
Importa fazer de cada instante o “hoje de Deus”, na obediência terna, na pobreza nobre e na fidelidade sem pausas.