Quando as palavras são como pedras

«Lamento muito, mas julgo que começarei também eu a dizer palavras e blasfémias. Actual­mente, se não fazes assim, é como se não existisses! Ninguém te dá importância!
Por que é que há tanta banalidade? Por que é que se ouvem tantos palavrões conotados com Deus e com o sexo?».

A vulgaridade

O que é a vulgaridade? Quando é que uma pala­vra ou um gesto se tornam vulgares, ordinários? Se as palavras do nosso vocabulário são compostas das mesmas vogais e consoantes, como é que algumas se tornam palavrões? Se todos os gestos do nosso corpo são o resultado de movimentos de nervos e músculos, por que é que alguns se tornam obscenos e enfadonhos? Devemos pôr-nos de acordo. De outro modo, arriscamos a perdermo-nos em pormenores e a não ir ao miolo da questão.
A vulgaridade nasce «dentro», na nascente dos sentimentos: ali, precisamente, onde cada pessoa decide quem é ela para os outros e quem são os outros para ela. Imaginemos um grupo de elegantes senho­ras reunidas num salão a tomar o chá. Precisamente no meio da cerimónia, quando estão todas a saborear o perfume e o sabor da bebida, chega o bebé ao qual a mãe, a dona da casa, se esqueceu de pôr os cueiros e ele suja o tapete.
A criança é «egocêntrica», isto é, coloca-se a si própria no centro do mundo que a rodeia, e não é capaz de ter em conta as exigências dos outros. As senhoras do chá, por isso, são compreen­sivas e dirão à dona da casa: «Como é simpático o seu bebé».
O «vulgar» é aquele que se comporta como a criança que suja o tapete, mesmo diante do nariz dos que estão deleitados com o chá. É um que, por uma série de motivos, não consegue perceber que existem também os outros com as suas exigências.
Um indivíduo entra no comboio com o transístor a todo o volume, sem se dar conta que pode incomodar os outros. Está convencido que todos se devem inclinar aos seus gostos. Eis que descalça os sapatos e estica os pés, precisamente diante do desventurado passageiro que está à sua frente. Fala muito alto, ri-se, grita, brinca, faz barulho.
Os outros não existem para ele ou, se existem, estão em função dele.

O zurrar do burro

O zurrar do burro num prado é uma coisa muito simpática e divertida. Mas o mesmo som, durante um concerto, seria uma desgraça!
Aqui está: a vulgaridade: é o zurrar do burro no lugar e momento errados.
Não se trata de ter ouvidos delicados ou falsos pudores, nem de ser «antiquados» e «ainda» se fazer caso de certas palavras ou de certos gestos.
A questão está no inteligente respeito pelas exigências e sensibilidade dos outros. A mesma pala­vra e o mesmo gesto, em lugares diferentes, têm resultados opostos.
Por que é que existe actualmente tanta vulga­ridade? Não acho que hoje exista mais vulgaridade que no passado. O que sucede é que se nota mais, porque a vida actual decorre vivendo todos mais próximos uns dos outros. Se outrora ela era fruto de uma deficiente educação ou de uma falta de instrução, hoje é fruto do egocentrismo tão comum e da falta de maturidade, que permanece durante demasiado tempo arreigada nas pessoas.
O vulgar é alguém que procura chamar a atenção sobre si próprio, utilizando meios fáceis e baratos.
Um palavrão (isto é, uma palavra dita no lugar e no modo não oportuno, sem respeito pelas exigências e sensibilidade dos outros) chama a atenção.
Uma blasfémia dá a sensação de nos sentirmos corajosos.
Um visual invulgar faz-nos sentir no centro dos olhares.
Um comportamento prepotente e barulhento dá a qualquer nulidade a sensação de existir.

Deus e o sexo

Por que é que a vulgaridade tem como alvo sobretudo Deus e o sexo? Se a vulgaridade é o instrumento das «sombras» para saírem do nada, é óbvio que esta se deve exercitar, sobretudo em direcção aos sentimentos mais delicados e íntimos: as convicções religiosas e a sexualidade.
O zurrar do famoso burro, que mal se nota no meio do ruído do mercado, é um trovão no ambiente religioso de um concerto. Uma mancha de tinta, que se perde no fato-macaco do mecânico, é um «tiro» no vestido branco da noiva.
As pessoas vulgares, mesmo se nem sempre se dão conta desta motivação, são levadas pelo instinto, como se tivessem herdado esta «esperteza» através dos cromossomas, onde, como, quando devem atacar…

Começarei também eu

Por favor, resisti! Há tantos modos delica­dos, construtivos e respeitadores dos outros para demonstrar que somos crescidos, confiantes em nós, adultos.
Mas o vulgar chama a atenção! Certamente, do mesmo modo que o burro, quando zurra durante um concerto. Mas estai certos, no próximo concerto estarão todos muito atentos para que o burro fique de fora.

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