Testemunho de Roma

Sei que neste momento, muitos estaram já um pouco cansados de tanto se falar em João Paulo II e da sua morte. Porém, gostaria de partilhar, para mim, em primeira pessoa, o que significou estar aqui, em Roma e poder dizer-lhe um último adeus.

Enchendo-me de coragem, na quarta-feira passada, resolvi, com outros cinco companheiros salesianos (do Brasil, México, Perú, Argentina e do Chile – um pouco de todo o mundo) e às 5h30 da manhã saímos de casa.
Ás 6h20 estávamos diante da “Radio Vaticana” ao fundo da “Via della Conciliazione”: aí começava a fila.
Havia muita gente. Pairava no ar um clima sereno.
À nossa frente estavam desasseis horas de espera… mas não fazíamos ideia disso. De tal modo, que, entre a oração e a partilha, íamos fazendo planos para a tarde.
Há nossa volta, como nós, havia crianças, jovens, adultos e pessoas com mais de setenta e talvez oitenta anos. Não posso dizer que caminhávamos, pois cada meia-hora avançávamos um, dois metros.

O ambiente era de “peregrinação”. Como quem caminha em direcção de Emaús. Há uns quantos dias que tinhamos partilhado a morte de João Paulo II e bastante tristes regressávamos à vida, agora sem ele.
Para mim, e para a maioria dos jovens que connosco estavam, este foi o único Papa das nossas vidas. Mesmo que tenhamos nascido antes de 1978, a nossa memória, não conhece outro. Cada um ia recordando coisas sobre João Paulo II.
Recordo que a primeira vez que o vi foi em Braga em 1982, tinha apenas 9 anos… depois em 1991… agora mais recentemente… enfim… agora tinhamos que nos despedir dele.
Como eu, muitos outros, iam dizendo as suas opiniões sobre este Papa. De como amou os jovens, de como se sentia bem entre as pessoas mais simples, como muitas vezes rompeu os protocolos, como defendeu a paz, a vida, o verdadeiro amor… de como era capaz de falar a multidões, falando a cada um individualmente…
Por isso, também hoje, esta multidão, vinha render homenagem e despedir-se do “seu Papa”. Porque para todos era muito seu e pessoal. Crentes e menos crentes.
Todos reconheciam nele uma voz de Deus no meio de nós. Ao longo do dia, fomos dando graças a Deus por tantas coisas… avançando lentamente… lado a lado, sabemos agora, com milhões de pessoas.
Não tinhamos levado provisões para tamanha espera… afinal de contas, como tinham dito que em media se esperava umas seis horas, pensávamos estar de regresso a casa por volta do meio-dia… uma bolaicha aqui, um pouco de água ali… assim nos fomos alimentando ao longo do dia… As horas passavam e nós avançávamos demasiado lentamente. Tanto que, de vez em quando nos vinha um cansaço imenso, que nos fazia ver que não seríamos capazes de chegar… mas não sei porquê, seguíamos adiante…
Diante de tão grande multidão vinda de toda a Itália e de muitos outros países da Europa e do Mundo, fomos pensando no que é que fazia mover toda esta gente, num dia de trabalho, numa semana ordinária… que é que os trazia a Roma e a querer ver o Papa?
Certamente um grande amor ao Papa. Talvez o reconhecimento de toda a sua vida em favor de todos. Talvez a vontade de querer dizer à Igreja-hirarquia: sejam todos como ele, e nós voltamos. Sim, porque estou certo que muitas destas pessoas andam arredadas das nossas igrejas (se calhar porque frias, sem sentimentos, agarradas ao “protocolo”, sem a juventude que este Papa trouxe onde quer que foi), mas todos sentem a necessidade de estar aqui. “Sejam como ele: fortes no anúncio do Evangelho, fortes no testemunho da vossa fé. Coerentes, consequentes, sem formalidades e formalismos.
Mas com muito afecto e muito amor. Com muito Evangelho nas vossas vidas. Ao mesmo tempo próximos de todos: “Não tenhais medo!”. Só um grande afecto pode mover toda esta genta. Só uma grande fé pode mover montanhas, diz o Evangelho.
Aqui está uma prova disso. De vez em quando, as pessoas começavam a cantar, a bater palmas, a mover as bandeiras. E percebia-se no ar, não um ambiente que supostamente deveria ser de luto e tristeza; mas da alegria própria da nossa fé, que sabe que, na vida para além da morte, está a nossa grande esperança de eternidade.
As cores, os cantos e as palmas, não eram portanto descabidas, porque marcadas pelo afecto, pela paz, pela alegria reconhecida. E portanto, também porque diante de João Paulo II, que tantas vezes apelou à santidade, não se pode estar triste, porque de “portas abertas a Cristo”!
E como digo, este era um verdadeiro caminho de Emaús. Porque também aqui, aquele que pensávamos morto, estava de novo connosco, explicando-nos de novo as Escrituras, indicando-nos o caminho a seguir. Motivo das nossas conversas, motivo do nosso testemunho, motivo deste nosso “peregrinar”.
De maneira que também agora era tempo de dizer: “JP II, fica connosco, porque se faz tarde”. Era por isso que estávamos todos ali. E de facto, penso que ele vai ficar connosco, porque não morreu: está vivo em nós.
Ás 22h45 entrávamos na Basílica. Era já noite. Faltava pouco para o encontro “tu-a-tu” com ele. Ao mesmo tempo que aumentava o nervosismo, aumentava o espírito profundo de oração que nos tinha guiado todo este dia. Que nos tinha preparado para este encontro. Faltava pouco para o nosso último adeus.
Tinhamos esperado 16 horas. 16 longas horas de cansaço, de sofrimento, de dores, de encontrões (por muito que se quisesse evitar!). agora era tempo de estar com ele. Foram poucos minutos. Mas foram intensos. Suficientes. Só para nós.
Não posso negar, que, como diante a um santo, lhe pedi por muitas intenções. Agradeci-lhe o muito que nos deu nos seus anos de pontificado. O muito que me deu a mim. Sobretudo, o muito que deu aos jovens do mundo.
Ao meu lado estavam as mesmas caras de crianças, jovens, adultos e idosos que, como eu, tinham esperado tanto tempo para este encontro. Também eles, certamente, com a mesma atitude de agradecimento e petição de interseção.
Naquela intimidade, despedi-me do “meu Papa”. Recordando imagens. Recordando histórias. Recordando a vida de fé com que nos foi alimentando todos estes anos.
Agora sim, era tempo de voltar. Era tempo de voltar à “minha Jerusalém” e dizer a todos que João Paulo II, vigário de Cristo entre nós, permanece vivo. E testemunhar o quanto a sua fé, aumentou a nossa fé. Quanto o seu afecto, inundou os nossos corações.
Depois de um encontro tão intenso, o cansaço fazia mossa. Não podíamos nem sequer caminhar. Como que se nos impedisse a força da despedida de nos afastarmos daquele lugar onde jazia o corpo do Papa.
Era o cansaço e a vontade de permanecermos ali. Rezando, partilhando, amando. De regresso a casa, cada um falava das suas emoções. Contava o quanto lhe tinha tocado toda esta jornada intensa e bela.
Sacrificada, mas cheia de emoções e de afectos. João Paulo II pode partir, mas ficará sempre nos nossos corações. Esta história não pode morrer.
Alguns pensarão que nos inunda um qualquer sentimento de idolatria e excesso. Penso que não: inunda-nos uma forma de afecto que reconhece como certos homens e mulheres são capazes de transmitir e testemunhar a Deus na vida. Na sua e na dos outros.
Como Madre Teresa. Como tantos outros santos e santas do nosso tempo. Como João Paulo II. Deste encontro tu-a-tu, fica a intensa memória de um adeus. Melhor, de um até já. Porque, como dizia o Cardeal Ratzinger na sua homília no dia do funeral, ele está agora, à “janela da casa do Pai” a dar-nos a sua benção, a sua paz. Por tudo, obrigado, Karol!

Roma, 6 de Abril de 2005
Pe. Tarcízio Morais, sdb

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