Liberdade e educação

Recebemos do forum "Liberdade e educação" um interessante artigo de Mário Pinto, originalmente publicado no jornal Público.

New Page 11.
Nos famosos tempos do Doutor Salazar, quando alguém defendia o direito aos partidos políticos (privados), logo lhe era retoricamente explicado, e às vezes por professores de Direito Constitucional, que só a União Nacional, criada como espécie de serviço público partidário “que cobria as necessidades de toda a população”, estava em consonância com a Constituição e “poderia constituir a plataforma adequada para as referidas funções cívicas de socialização política, de coesão social e de unidade nacional, num quadro de pluralismo político e religioso”. E depois esta tese era devidamente desenvolvida com inúmeros argumentos fundados na experiência do passado, na Constituição e no interesse público, destacando a ideia de que “o direito (à participação partidária) foi concebido como direito (à participação na União Nacional) e não como a qualquer (participação) e a qualquer (partido)”. “Só a (União Nacional), socialmente aberta e plural, bem como neutral sob o ponto de vista ideológico e confessional, é que poderia constituir (aquela) plataforma adequada”.
Leitor amigo: faça o favor de reler este parágrafo, substituindo “participação partidária” por “ensino”, e “União Nacional” por “escola pública”, e verificará que este discurso ideológico é ainda perfeitamente actual porque ainda há hoje quem o defenda.

2. Toda a gente sabe como nasceram os sistemas estaduais de ensino público: como desígnio do Estado sobre as sociedades civis e as nações correspondentes. Neste desígnio, couberam boas intenções e más intenções. As boas intenções foram essencialmente sociais e culturais, como o acesso generalizado dos cidadãos ao ensino e a construção ou fortalecimento da identidade nacional e do progresso. As más intenções foram intuitos ideológicos de Estado – destacando-se entre nós o combate ao protagonismo tradicional da Igreja no ensino (contrapondo-lhe a escola laica), o combate ao regime monárquico (contrapondo-lhe a escola republicana) e depois o combate ao pluralismo democrático com a escola nacional-corporativa.
Quase por toda a parte, e mais ou menos conforme o maior ou menor autoritarismo dos regimes políticos, o Estado abusou deste efeito perverso em nome do efeito virtuoso. Se bem que, ao contrário do que certos afirmam erradamente, haja muitos países democráticos na Europa onde o Estado não discrimina nos seus apoios a escola privada – por exemplo, Holanda, Bélgica e outros (v. Fernández e Nordmann, O Direito de Escolher a Escola, edição da AEEP).

3. Umas vezes, claramente e pela positiva, outras vezes, mais disfarçadamente pela oposição e combate a legítimas autonomias e liberdades doutrinais, nunca houve escola pública neutra, isenta de desígnios de orientação sobre ela pelos poderes políticos. Acerca da (im)possibilidade de uma escola pública neutra, é referência um célebre ensaio de António Barreto, publicado na revista Risco, onde se defende convincentemente que nunca houve escola pública neutra.
Isso mesmo é paradoxalmente comprovado pela apologia da escola pública, que foi quase sempre a mesma. Com recurso a conceitos abertos e a sofismas, alternando, conforme as conveniências, a focagem formal-jurídica, umas vezes, com a focagem real-objectivista, outras vezes. Assim, por exemplo, dizer que “o sistema público de ensino é constitucionalmente obrigatório… mas que não tem, nem poderia ter, nenhuma posição exclusiva”, não passa de um cocktail de sofismas. Primeiro, ser constitucional não significa que seja indiscutível e nem sequer que seja bom – toda a gente sabe como foi feita a nossa Constituição e os vieses colectivistas e estatistas que ela tinha (e ainda tem). Segundo, a constitucionalização referida foi aprovada maioritariamente na Constituinte exactamente para a escola pública ser exclusiva a curto prazo – e quem agora escreve sobre estas coisas bem o sabe, porque fez então questão de qualificar o ensino privado como meramente supletivo. Terceiro, dizer que “a existência de sistemas públicos não preclude a existência de sectores privados concorrentes” é pura hipocrisia, quando se sabe que o monopólio público, além da concorrência desleal de ser gratuito, é o regulador e o fiscalizador das sectores privados concorrentes; e comporta-se como activamente adversário dos privados (em meu entender, não vem longe o tempo em que se há-de pôr o problema da concorrência desleal entre a escola pública e a escola privada, em Portugal).

4. Se alguém quisesse demonstrar mais eloquentemente o absurdo do monopólio da escola pública, não arranjaria facilmente melhor argumento do que o imbróglio da recente trapalhada da educação sexual. Perante a necessidade de uma educação das crianças e jovens que seja integral, como uma boa educação deve ser, e que portanto não omita as questões da sexualidade, e sendo certo que estas questões são irredutivelmente, além do mais, questões de moralidade e da prioridade de decisão dos pais, a escola pública faz protocolos com entidades privadas para, indirectamente, disfarçar o seu viés em matéria que está vedada ao Estado programar. Fazendo contrabando ideológico.

Adenda. É um caso de antologia a declaração do Presidente da CNAP em favor do papel da sociedade (do Estado?) sobre os filhos, quando estava em causa a prioridade do estatuto (direitos e deveres) dos pais. Já se tinha percebido que a orientação deste dirigente era mais em favor de sindicatos e de uma ideologia de escola pública do que de uma representação genuína dos pais. Mas ao menos podia evitar dizer inconstitucionalidades. A nossa Constituição, neste ponto alinhada com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, diz que “os pais têm o direito e o dever de manutenção dos filhos”. A Declaração da ONU afirma expressamente a prioridade dos pais. A nossa Constituição diz ainda que “os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão fundamental”. Esta proibição de separação vale também para efeitos de educação. Num outro lugar, acrescenta a nossa Constituição: “Os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível (insubstituível!) acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação…”. É claro, não é? A sociedade e o Estado protegem os pais e as mães; mas não podem ir ao ponto de os substituir, porque eles são “insubstituíveis”.
Aproveito-me da ocasião para pedir também a atenção de alguns constitucionalistas para estes princípios fundamentais, que colocam o Estado em posição ancilar e subsidiária relativamente aos pais em matéria de educação dos filhos. Neste sentido, o Estado pode e deve pagar o ensino – e sem discriminações; mas não pode educar. Ergo…

Partilhe

Facebook
WhatsApp

Relacionados

Cyberattack
Comunicado: Fundação Salesianos alvo de ataque informático
A Fundação Salesianos foi alvo de um ciberataque, que resultou num acesso não autorizado aos nossos sistemas...
Banda Missio Concerto 15 anos
Banda Missio celebra 15 anos com concerto solidário
Na noite de 26 de outubro, o Auditório São Vicente, em Alfena, foi palco de uma celebração especial:...
E-vangelizar Estoril 24 - Noticia
E-vangelizar 24: Estoril avança na esperança
Os Salesianos do Estoril acolheram a terceira edição do XIV E-vangelizar. Após duas edições no Porto,...
Evangelizar24-Formadores
E-vangelizar 2024 Porto: edição dupla inspira Agentes Pastorais a ter mais Esperança
A XIV edição do E-vangelizar marcou um novo capítulo na formação pastoral no Porto, sendo a primeira...

Últimas

Pesquisa