Um ano para educar, uma escola a redescobrir
O tema da educação, especialmente a escolar, é sem dúvida do maior interesse e substância. No entanto, culturalmente falando, esta mesma caracterização é já o problema: “interesse” conjuga-se hoje no plural e na variedade; e a “substância”, se persiste, é muito mais rarefeita, menos densa na consistência do objecto e na convicção do sujeito.
Não é demais verificá-lo, mas seria demais criticá-lo de modo apenas negativo. A pluralidade dos interesses vem da complexificação dos motivos e motivações que sucessivamente nos tocam e interpelam. A catadupa de informações e descobertas, o cruzamento de dados em redes múltiplas, tudo questiona amanhã as certezas de hoje e muito mais as de ontem ou anteontem… Estamos já muito longe do “livro único” e é muito difícil fazer compêndios. Igualmente difícil, senão impossível, é manter um pensamento linear e uma coerência simples, feita de cortes apriorísticos e metas prefixadas.
Daí que a substância educativa se ressinta e dilua. Onde são tantos os motivos, são difíceis as súmulas e as sínteses; os enciclopedistas cederam o lugar aos especialistas e estes, em termos clássicos, estão mais do lado dos acidentes do que da substância. Claramente mais do lado da perspectiva individual do que da visão global, mais da “contribuição” ou da “abordagem” particulares do que do discurso universal. Ressente-se disso a filosofia, mais retraída nas condições do conhecimento, como gnoseologia, do que no seu objecto primeiro e último, como metafísica.
Repito que não entendo isto como algo de absolutamente negativo, antes como exigência, ou crise, de crescimento. Nem sequer é totalmente inédito, mas tem hoje intensidade maior, sobretudo em termos quantitativos.
Digo-o por ser recorrente pensar que os tempos mudam e mudam para pior, no que à educação geral respeita. E também para adiantar o que retomarei depois, ou seja, que o futuro da educação, dentro e fora de Portugal, estará mais do lado dos educadores e dos educandos do que das “matérias” em si mesmas.
Atendamos às seguintes apreciações: “Como me envergonho dos rapazes deste século. […] Um rapazinho de treze anos comete hoje mais embustes e mais acções reprováveis que dez homens feitos do tempo dos nossos pais. […] Uma menina de hoje é mais pretensiosa que uma mulher núbil de outros tempos. Qual é a causa disto? Só Deus sabe. Actualmente, as crianças são precoces”.
Talvez nos pareçam muito actuais e agora ouvidas… Na verdade, “permanecem” actuais sendo já muito antigas, recolhidas no século XVI!(1) E poderíamos remontar mais atrás, muito antes dos progressos modernos, da aceleração do tempo e da generalização dos relógios. Cada geração define-se em relação a certo entendimento geral das coisas, nas primeiras fases da vida. Algo sobrevém de seguida, quantitativa e qualitativamente, que, quando questiona o anterior, desperta reservas.
Hoje em dia é tal a precipitação das novidades e tão variada a sua qualidade que a referida apreciação reticente facilmente se transforma em aceitação desistente. Outrora, as reservas advinham de se porem em causa valorizações objectivas. Hoje, as desistências referem-se à “insustentável leveza do ser”, segundo um título pós-moderno (Kundera): se tudo parece ser e não ser, acontecer como desacontecer, a tendência é para resumir a sociabilidade à segurança física, a liberdade à disponibilidade para fazer isto ou aquilo, a verdade ao equilíbrio instável dos consensos ocasionais.
Os reflexos na educação são obviamente grandes e graves. – Partindo de quem está para quem vem, como ainda é costume, que proposta se fará, que base de valorização e vida?
Não admira que este seja um sector de particular ensaio e melindre na nossa sócio-cultura, tanto nas propostas teóricas como nas tentativas práticas. Educação significava acção formal e formativa, escola era instituição adequada a tal, família e docentes iam no mesmo sentido, sobre valores comuns e desejados. Actualmente, família e docência parecem menos consistentes, escola e educação são (in)definições mais trabalhosas.
Estas questões têm um âmbito bem mais largo, que é precisamente o da sociedade e da cultura. – Concretamente quanto à escola e à educação, em especial as públicas, o que é que queremos todos para transmitir a todos, mesmo que só essencialmente falando? Creio que nenhum de nós saberá responder sem hesitar a esta questão, aliás a mais básica e directa…
Chegámos portanto a uma aporia ou hesitação irremediável. E, quando isto acontece, qual beco sem saída, só nos resta uma solução, caso não queiramos desistir: voltar atrás e procurar outro caminho.
Devemos constatar com algum optimismo que a humanidade tem progredido exactamente assim, mais por patamares ou saltos do que nas actuais “escadas rolantes”. No próprio caso de cada um é frequente verificá-lo, em legítimas crises de crescimento, mesmo sem serem imediatamente bem-vindas.
A tendência é, de facto, para alongar lemas e modos muito além da sua funcionalidade, repetir actualmente respostas dadas a perguntas de ontem, perpetuar representações que a realidade conhecida e vivida já ultrapassou.
Até que esta mesma se torne irremediável ou “incontornável”. Só nos restará então voltar à rotunda e sair por outra via. Assim estaremos, parece, sem perder nada dum passado que só no fim se mostrou insuficiente, dando-nos, precisamente nisso, o melhor contributo para o futuro. Mesmo para o futuro da educação em Portugal.
A nova via, não a escolheremos às cegas. Desse mesmo passado sobra alguma coisa, algum indício. Precisamente o que nos centra nas pessoas, nos vários agentes do mundo educativo.
Também é neles que a referida aporia se manifesta primeiro. Por experiência pessoal e certamente compartilhada por muitíssimos, sei que a maior parte das observações e queixas provêm desse mesmo campo pessoal e interpessoal: questões de disciplina, de interesse pelas matérias, de objectivos globais e parciais… – Que fazer, que ensinar e para quê, em suma, no sentido da realização de todos e cada um (alunos e professores, auxiliares e famílias, comunidade local ou global)? – Que fazer fazendo-nos realmente, satisfatoriamente?
Mantêm cabimento as seguintes observações sobre a “crise de identidade e formação dos professores na actualidade”: “ … os professores parecem sofrer – e não conduzir, embora de maneira modesta – a evolução da sociedade. A bem dizer, as atitudes dos professores perante a acção política ou a construção do futuro são contraditórias, na medida em que ‘o ofício de professor se enraíza numa certa ética e na aguda consciência da superioridade do letrado. O professor tem por vezes vontade de defender os valores que justificam o seu magistério. Conserva-se facilmente fiel à imagem de uma sociedade tradicional, hierarquizada e respeitadora do saber e da cultura’ [P. Gerbod]. […] Seria também necessário recordar, para explicar o actual mal-estar, por um lado o peso das estruturas hierárquicas e, por outro, o lugar real que, tanto sob o ângulo material como sob o ângulo moral, é concedido na sociedade aos professores. […] Hoje, os progressos realizados nas ciências humanas e nas ciências da educação, juntamente com a evolução da reflexão política sobre as relações entre a escola e a sociedade, contribuem para modificar sensivelmente as concepções e as perspectivas da formação dos professores”. (2)
Em quatro pontos se detêm as observações escutadas: sobre a identidade do professor; sobre a tradição “conservadora” do seu ofício; sobre o seu lugar na sociedade; e tudo isto no novo quadro de relações entre escola e sociedade.
– Conduzir ou sofrer a evolução da sociedade? É sabido como a figura do professor, sobretudo na viragem do século XIX para o XX, era tida como determinante para a formação de novas gerações laboriosas e progressivas. Quase substituía o sacerdócio antigo da divindade pelo “sacerdócio” novo da humanidade e do futuro. Depois, em termos menos românticos mas ainda iluministas, “abria” inteligências e adestrava engenhos, em saberes mais clássicos ou mais tecnológicos. O mundo estava aí como campo largo e a história projectava-se como caminho certo. O problema, magno problema, surgiu com a desilusão de guerras e pós-guerras, as suspeitas generalizadas sobre os reais intuitos de grandes e pequenos, as retracções consumistas dos antigos ideais e a dificuldade em mantê-los como horizonte, tudo isto junto e a fragilizar a figura e a convicção do professor remanescente.
Numa escola que transmitia o saber adquirido, era deste lado que normalmente se situava o professor, como seu expositor e guardião. Numa escola onde se repercutam mais as dúvidas teóricas, ainda que metódicas, e as incertezas, ainda que de operação e ensaio, a natureza docente mudará também.
Aliás, a sociedade actual manifesta uma relação ambígua com a escola. Compreende-se e advoga-se o seu papel de transmissão e inovação no campo dos saberes teóricos e práticos. Mas não se lhe dá o lugar central que pretenderia ter nesse sentido, quer porque a escola perdeu a reverencial proeminência anterior, quer porque a transmissão dos conhecimentos a extravasa, numa rede muito mais larga e omnipresente, informática sobretudo.
Por tudo isto e além do mais, procura-se um outro enquadramento escola-sociedade e estamos longe da nova plataforma a alcançar. Entretanto, a transformação do sistema educativo traz ao professor custos e riscos. Tão inevitáveis como promissores, acrescente-se.
A perplexidade mantém-se, porque incide sobre os próprios objectivos da sociedade. Indefinidos estes, fragilizam-se os elos pessoais duma tradição dinâmica, como o são particularmente os professores, e mais difícil se torna a motivação dos alunos. Já há duas décadas se escrevia assim: “ … o sector da educação, em Portugal, vem-se debatendo com muitas lacunas e dificuldades que condicionam o seu desejável desenvolvimento. Delas se destacam umas de carácter hexógeno e outras de carácter endógeno. Do primeiro conjunto salientam-se as seguintes: ausência de um modelo de desenvolvimento global, sectorial e regional para a sociedade portuguesa […]; falta de articulação entre a educação/formação, o emprego e a actividade económica […]. Quanto às questões endógenas são de referir as seguintes: […] falta de relacionamento do sistema educativo com o mundo do trabalho e com o meio; […] indefinição do perfil dos docentes necessários para o ensino não superior”. (3) Devemos constatar que, apesar dos inegáveis esforços posteriores, ainda há muito a repensar e a fazer para que a escola e a sociedade se reencontrem, com as necessárias consequências na relação cultural professor – aluno. Como igualmente constataremos que, dada a radicalidade da mutação contemporânea, o “problema” não se resolverá a partir do Estado, hoje menos consistente, mas duma sociedade que não desista de continuar.
Como se apontava atrás, é como sociedade aberta e dinâmica, do passado para o futuro, que nos devemos redefinir. Então também nos reencontraremos na escola, e muito especialmente aí. Longe de se desactualizar, ela obterá a máxima pertinência, mas como local onde de algum modo estejamos todos. Todos, porque a formação será obra da vida inteira, do pré-escolar ao “sénior”, aprendendo-se sempre, segundo a respectiva idade. Todos, porque em cada patamar de ensino se conjugarão as diversas instâncias da sociabilidade e da cultura: professores e alunos, auxiliares e famílias, instituições e ambientes, o meio próximo e o mais alargado. Que a escola e os que a fazem não se sintam postergados, mas valorizados pelo seu lugar central no conhecimento.
Conhecimento que, por ser partilhado e convivido, se torna reconhecimento mútuo, de pessoas e saberes, convicções e pesquisas, em secularidade preenchida e só assim verdadeira.
Secularidade refere-se ao mundo de todos, neste tempo comum. Não “independentemente” das convicções de cada um, mas exactamente na sua partilha. As pessoas sustentam convicções e sustentam-se por elas, mesmo quando não pareça. Abstrair deste aspecto é abstrair da vida real e geometrizar “no espaço” e não no século, no mundo concreto das pessoas vivas. Importa é que a escola se torne lugar de aproximação e convivência, sobretudo local, onde o conhecimento mútuo impeça o confronto de fantasmas ideológicos e crenças reprimidas.
Já o devíamos ter aprendido, com inúmeras “lições da história”, neste campo das convicções. Foram primeiro os unanimismos próprios e forçosos – também forçados – de tempos menos complexos: perigavam as minorias étnicas, religiosas e outras. Foram depois os assomos laicistas da modernidade, para que outro unanimismo se conseguisse por exclusão de partes, calando a transmissão pública das crenças e remetendo-as para o âmbito particular: perigava a verdade humana das convicções partilhadas e animadoras da vida em geral, sem as quais a pessoa concreta é sacrificada à abstracção individualista ou massificada, sem rosto nem nome autênticos.
De iniciativa pública ou particular, a escola não pode restringir arbitrariamente a proposta cultural, também no que à religião respeita. E insistindo sempre no carácter pessoal e personalista do processo educativo.
Para os professores, seja qual for a matéria, trata-se de partilhar o saber que activamente “professam”. Há muito que sabemos como eles são tão importantes como o ensino que ministram, exactamente pela intensidade existencial com que o façam. Com tais professores, os alunos são mais facilmente envolvidos num processo geral de conhecimento em que já começam a ser protagonistas.
Para realizar o bem comum, cabe ao Estado viabilizar uma escola assim, de iniciativa pública ou particular, distribuindo recursos e motivando sempre: segundo a vontade de todos e em benefício da coexistência e partilha de ideários e métodos legítimos. Legítimos pelo critério humanista (em prol da dignidade de cada pessoa humana), legítimos pela bondade realmente demonstrada (activando a solidariedade), legítimos pela real capacidade criativa (da ciência ao espírito).
Aí temos mais o novo ano lectivo, para avançarmos juntos. Partindo do encontro inter-pessoal, numa sociedade de todos que conte com cada um.
Porto, 28 de Agosto de 2008, Memória de Santo Agostinho
+ Manuel Clemente, Bispo do Porto
1 Cit. por LÉON, Antoine – Introdução à História da Educação. Lisboa: Edições Dom Quixote, 1983, p. 40.
2 LÉON – Introdução, p. 251-252.
3 GRILO, Eduardo Marçal – A evolução do sistema educativo nos anos 74 – 85. Povos e Culturas. 1 (1986) 284-285.