Passado um ano o mundo ainda pergunta o que é que João Paulo II tinha de especial para, tanto em vida como na morte, arrastar assim multidões, em meu entender, diria que foram três as principais linhas de orientação que o Papa nos deixou.
Em primeiro lugar, a linha da autenticidade da sua fé e das suas convicções. É muito frequente, no presente e no passado, encontrarmos líderes que dizem defender determinados princípios mas não agirem em coerência com os valores correspondentes.
George Bush, por exemplo, por mais que badale ao mundo os seus propósitos humanitários contra a tirania de Saddam Hussein, continuará a deixar uma grande parte da Humanidade incrédula quanto a esses propósitos, e muitos continuarão a ver no petróleo a sua verdadeira motivação da invasão do Iraque.
Também Fidel Castro se apresenta como um combatente da liberdade contra a tirania, mas ele próprio mete na cadeia e priva das liberdades mais elementares todos quantos se lhe atravessam no caminho.
Em João Paulo II, concorde-se ou não com os seus valores, é difícil haver alguém a acusá-lo de incoerência entre os valores espirituais que apregoava e a sua própria vida. Esta mais não foi do que a expressão genuína de uma doutrina e de uma fé que o orientaram em toda a sua vida.
Em segundo lugar, a linha da relevância dos valores espirituais. No passado, vários personagens – do mundo do pensamento, como Nietzsche, ou do mundo da ideologia, como Marx – decretaram a morte de Deus e dos valores espirituais. No entanto, hoje como sempre, uma grande parte dos seres humanos não encontra plena satisfação para as suas aspirações mais profundas fora dos valores intemporais do Transcendente e do Eterno.
Vulgarmente, eu direi mesmo instintivamente, as pessoas vivem o seu dia a dia preocupadas ou entretidas apenas com os problemas do dinheiro ou do poder. E se é certo que estes dois valores não são um mal em si mesmos, podendo sê-lo no uso que se faz deles, não é menos verdade que eles são insuficientes para satisfazer os desejos mais profundos de felicidade que todo o ser humano comporta. João Paulo II irradiava do seu rosto uma felicidade que não resultava de ser uma pessoa rica ou com poder, mas de uma vivência autêntica de espiritualidade e de comunhão com o Outro. E aqui reside a terceira linha ou lição do Papa agora falecido, ou seja, a linha da abertura ao Outro. Antes dele, nunca nenhum Papa tivera a mesma simpatia tanto junto dos católicos como dos outros cristãos, dos árabes como dos judeus, dos crentes como dos não crentes. Para lá das contingências e das circunstâncias da confissão de fé, da etnia e da ideologia política, João Paulo II via sempre em cada pessoa o ser humano que era. Neste capítulo, um senão lhe é apontado por algumas vozes silenciadas durante o seu pontificado: dentro da Igreja Católica, João Paulo II não deu sinais da mesma tolerância e da mesma abertura ao Outro, como aconteceu em relação aos que professavam outros credos e outras ideologias. Mesmo que assim tenha sido e mesmo que essa inflexibilidade de que deu mostras dentro da própria Igreja tenha resultado de si próprio e não dos seus colaboradores mais dogmáticos e mais conservadores, nem por isso o seu carisma fica diminuído, porque perfeito, como diz o povo, só Deus.
E, acima de tudo, a imagem que perdura de João Paulo II é a imagem de um homem de bem, defensor da paz contra tudo e contra todos, incluindo os mais poderosos do mundo, combatente contra a tirania e contra os totalitarismos de esquerda ou de direita, adversário tanto do colectivismo marxista como do liberalismo selvagem capitalista. Pela sua autenticidade, pela sua espiritualidade desinteressada e pela sua abertura sem reservas ao Outro, João Paulo II foi uma referência e um farol, como muitos lhe chamaram, que apontou caminhos a toda a Humanidade os caminhos da paz contra a violência, da tolerância contra o dogmatismo, da fraternidade e da solidariedade contra o egoísmo, da espiritualidade contra o materialismo.
Tomás Freitas